
Se pararmos para olhar o universo à distância, veremos que em seus primeiros momentos ele era bem simples, era um espaço cheio de matéria, algo sem caracteres ou características. Era o que na mitologia Hindu se chama de “Turiya” – palavra que descreve algo como “sem atributos”. Leva tempo para ocorrer uma transformação em reinos mais criativos. A pré-condição para a criatividade é o desequilíbrio, o que os matemáticos atualmente chamam de Caos. Através da vida do universo, à medida em que caíam as temperaturas, surgiam estruturas compostas cada vez mais complexas. A partir do estado de fecundidade criativa, manifestava-se mais criatividade. O universo é uma máquina de fazer arte, um motor para a produção de formas cada vez mais novas de se estar conectado, e da justaposição cada vez mais exótica de elementos díspares.
Cada artista é uma antena para o Outro Transcendental. Enquanto seguirmos com nossa própria história para dentro disso e criarmos confluências únicas de nossa singularidade e sua singularidade, nós criamos coletivamente uma flecha a partir da história, do tempo, talvez até a partir da matéria, a qual vai redimir a ideia de que os humanos são bons. Esta é a promessa da arte, e sua realização nunca esteve tão perto do momento presente.
Improvisação - Giant Steps (John Coltrane)
Esta seção, "Improvisação", é destinada aos músicos que desejam conseguir criar música espontaneamente, empregando essencialmente a linguagem do jazz. Para que isso seja possível, serão analisados tópicos como harmonia, forma, escalas, ritmo e estratégias tradicionais de improviso.
Encerramos essa série com a composição revolucionária Giant Steps,
ouça-a no vídeo acima e o toque junto ao playback ao fim da lição, uma contribuição ao nosso conteúdo feita por André Borela.
A seguir está sua notação:

Apesar da aparente complexidade da música, depois de assimilada harmonicamente e formalmente, são explicados de onde vêm seus artifícios de arquitetura composicional, o que permite nosso improviso.
Um adendo importante é que essa música foi composta em 1960, numa época em que estava sendo experimentado na linguagem do jazz um pensamento muito funcional a harmonia modal. Então é preciso identificar os pontos onde o compositor pensou 'funcionalmente' ou 'modalmente'.
Formalmente, esse standard tem 16 compassos e pode ser analisado como AABB, onde:
A | Bmaj7 - D7 | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 |
A(2) | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - F#7 | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 |
B | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 | Gmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
B(2) | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
Os 4 primeiros compassos (A) anunciam a primeira progressão de acordes da música, que é repetida nos compassos 5 a 8 (A2) em outra tonalidade. O mesmo ocorre depois nos compassos 9 - 12 (B), nos quais a cadência/progressão de acordes muda de padrão; e depois se repete também em outra tonalidade (B2) nos compassos 13 - 16. É impossível entender completamente um aspecto da música totalmente isolado de outro... então vamos à análise harmônica, pressupondo que você já tenha passado pelas lições básicas sobre harmonia.
A progressão tem 3 centros tonais (B, G e Eb) e é estruturada basicamente em funções/cadências V7 - Imaj7 e iim7 - V7 - Imaj7, feitas nas diferentes regiões harmônicas -- ou seja, modulando para entre os diferentes centros tonais.
As tonalidades modulam de uma a outra completamente (guarde esse detalhe) a cada 2 compassos, ascendendo em intervalos de terça maior, da seguinte maneira -- você pode acompanhar a gravação com seu instrumento para conseguir ouvir o centro tonal:
A | Bmaj7 - -- | ----- - --- | Ebmaj7 - --- | --- - -- |
A(2) | Gmaj7 - --- | ------ - --- | Bmaj7 - --- | --- - --- |
B | Ebmaj7 - --- | --- - -- | Gmaj7 - --- | ---- - --- |
B(2) | Bmaj7 - --- | --- - --- | Ebmaj7 - --- | ---- - --- |
Porém, é possível ouvir outras regiões harmônicas entre esses centros tonais básicos (de cada 2 compassos). Apesar desses serem os pilares da progressão, os acordes maiores tocados entre eles têm bastante valor funcional/tonal:
A | Bmaj7 - D7 | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 |
A(2) | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - F#7 | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 |
B | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 | Gmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
B(2) | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
Todos os acordes V7 estão resolvendo em seus respectivos Imaj7; todos os iim7 estão preparando para seus respectivos V7. Os acordes Imaj7 (em branco) funcionam como "resoluções passageiras", modulações que não podem ser ignoradas mas também não têm um peso e clareza tradicionais de resolução.
Aprofundando esta análise, vamos entender como funcionam as nuanças de consonância-dissonância, tensão, estética... Levando em conta os acordes Imaj7 explicados, nas partes A e A2 a progressão harmônica prossegue modulando em terças maiores descendentes -- Bmaj7 --> Gmaj7 --> Ebmaj7 | Gmaj7 --> Ebmaj7 --> Bmaj7. As partes B e B2 prosseguem modulando em terças maiores ascendentes -- Ebmaj7 --> Gmaj7 | Bmaj7 --> Ebmaj7. (Vale notar a coincidência e simetria matemática dessa progressão, devido a modular em terças maiores ascendentes a cada 2 compassos ser "equivalente" a modular em terças maiores descendentes a cada 1 compasso).
O que mais se percebe na música são os tradicionais encadeamentos e resoluções V7 - Imaj7 e iim7 - V7 - Imaj7. Essa sensação harmônica pode ser observada em toda a história da música ocidental, e tem a 'coloração', 'sabor', de tensão/escuridão/distância (V7, mixolídio) repousando numa sonoridade doce/clara/leve/repouso (Imaj7, jônio/maior).
"Onde", (ou seja, a região harmônica) vai ocorrendo esses encadeamentos, é que proporciona as demais nuanças à nossa percepção. Durante a música toda, as resoluções passam por 3 centros tonais (B, G e Eb) ciclicamente, por isso a sonoridade repetitivamente cíclica.
Nas seções A e A2, como a modulação acontece em terças maiores descendentes -- 2 modulações em A e mais 2 em A2 --, os acordes Imaj7 de repouso soam um pouco mais "escuros" do que os Imaj7 de repouso das seções B e B2, que modulam em terças maiores -- 1 modulação em B e mais 1 em B2. Isso é explicado pela diferença estética dos intervalos de terça maior ascendente e terça menor descendente. Toque em seu instrumento e veja que, em relação à nota dó, mi (3ª maior asc) soa muito mais 'consonante' (claro) do que sol sustenido (3ª maior des), que soa mais 'tenso' (escuro).
Dentre as principais escalas que podem ser usadas nesse improviso, o mais tradicional é usar a escala própria de cada centro tonal, considerando os centros tonais "passageiros" explicados. Ou seja:
A | Bmaj7 - D7 | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 |
A(2) | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - F#7 | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 |
B | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 | Gmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
B(2) | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
Onde:
B - B maior/jônio
G - G maior/jônio
Eb - Eb maior/jônio
Uma alternativa é levar em conta os centros tonais básicos, ficando:
A | Bmaj7 - D7 | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 |
A(2) | Gmaj7 - Bb7 | Ebmaj7 - F#7 | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 |
B | Ebmaj7 - % | Am7 - D7 | Gmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
B(2) | Bmaj7 - % | Fm7 - Bb7 | Ebmaj7 - % | C#m7 - F#7 |
Onde:
B - B maior/jônio
G - G maior/jônio
Eb - Eb maior/jônio
Detalhe: ao improvisar vendo a progressão dessa maneira, soará muito "arrastado" caso a progressão harmônica original esteja sendo tocada por um instrumento que acompanha o solista. Por isso, nessas regiões (os compassos 2 e 6, mais especificamente) além de ser possível manter a escala relativa à tonalidade, é possível também improvisar como se houvesse modulado para a homônima, a tonalidade menor da tonalidade inicial (B jônio para eólio). Por exemplo, nos compassos 1 e 2, é possível ver tanto como B jônio [no compasso 1] e G jônio [no compasso 2] (primeira opção), quanto B jônio [comp. 1] e B jônio [comp. 2] (segunda opção, ignorando a resolução passageira pra G) ou B jônio [comp. 1] e B eólio [comp. 2] (terceira opção, como se fosse uma modulação para o modo menor).
Igualmente, nos compassos 5 e 6 é possível tocar G jônio [no compasso 5] e Eb jônio [no compasso 6] (primeira opção), quanto G jônio [comp. 5] e G jônio [comp. 6] (segunda opção, ignorando a resolução passageira) ou G jônio [comp. 5] e G eólio [comp. 6] (terceira opção).
Essa terceira opção é de alto valor, pois se ajusta à escolha das notas do solo em relação ao "nível de função" (funcional vs modal) que os acordes nas seções A e A2 têm, resultando num solo de mesmo nível funcional que tem sua progressão harmônica.
Agora estamos preparados para brincar encima desse tema. Coloque o backing track e inicie seus estudos! Caso ainda seja difícil fazê-lo, para saber melhor como aplicar as instruções desse post, leia a série de teoria musical.